segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A “Estalagem das Pulgas” ou o cap. XXVII de “A Filha do Arcediago” de Camilo Castelo Branco

Sigamos Augusto Leite, enquanto sua mulher e filha dão a Maria Elisa a felicidade, que ela lhes remunera com afagos.
O jogador, febril de contentamento, entrou em sua casa, no Laranjal, disse algumas palavras a sua mãe e mandou preparar a inseparável moçoila que o acompanhava na boa e má fortuna havia quatro anos.
Saiu e comprou uma jaqueta de peles, uma faixa de seda escarlate, chapéu de guizos, um par de pistolas, um cobrejão e dois cavalos de baixo preço.
Duas horas depois, a rapariga, encadernada numas andilhas, passava na Ramada-Alta, estrada de Vianna, e Augusto Leite, com pau de choupa debaixo da perna, esporeando o cavalo, à laia de cigano, caminhava a par com ela.
Nesse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas netas eu encontrei trinta anos depois, pulgas enormes e ferozes, que arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exaurem as artérias dum sangue azedado pelo maldito vinho que a estalajadeira vos ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mezinha para matar as bichas dos pequenos.
Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!» deveria ser, no império romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às feras!»
Era alta noite e eu não podia transigir, dormindo, amigavelmente com a ferocidade dos insectos, se é que não podemos chamar cetáceos àquelas pulgas, de horrível recordação. No sobrado imediato ao da pocilga em que eu me contorcia nas vascas duma agonia de novo género, rosnavam uma boa dúzia de galegas que vinham da terra a visitarem os respectivos galegos residentes no Porto.
Descompunham-se em raivosas apóstrofes por causa das mantas, que algumas delas monopolizavam com grave escândalo e frialdade das outras. Dos impropérios passaram a vias de facto. Socaram-se, esgadanharam-se, revolveram-se, creio eu, como uma matilha de cadelas e vieram de encontrão à porta do meu quarto, que não resistiu ao choque e deixou entrar aquele embrulho indecifrável de górgonas em fralda de camisa, que me pareciam, à luz mortiça da vela, executarem uma dança macabra, uma mazurca de demónios!
Eu levantei-me em pé sobre o catre de pau castanho, pintado de amarelo, e presenciei com os cabelos erriçados o desfecho daquela tremenda luta. O dono da estalagem e o meu criado vieram protocolizar a desordem, distribuindo alguns murros indistintamente, de que resultou a fuga desordenada das galegas para o seu arraial, ficando considerado o meu quarto campo neutro.
Nesse mesmo quarto, às duas horas da noite, também o senhor Augusto Leite recebeu uma inesperada visita; mas não de galegas em guerra crua. Eram oito soldados de cavalaria, comandados por aquele estúrdio cadete que o leitor conhece e reforçados por alguns meirinhos do corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças.
Já soubemos que Augusto Leite roubara em Lisboa uns brilhantes. A razão por que os roubara deu-a Prudon depois: os brilhantes eram propriedade da condessa de …, e a propriedade era um roubo.
Como se introduziu Augusto Leite em casa da condessa de …? Não é bem líquido, e eu não quero inventar, porque não tenho necessidade de deslustrar a veracidade do meu conto por amor dum incidente de pouca monta. Disseram uns que Augusto Leite era amante da condessa; outros afirmam que o académico, expulso da universidade, se valera dum seu condiscípulo, primo dessa senhora, para ser protegido por ela na sua admissão à academia. Eu, de mim, para não duvidar de nenhuma das explicações, acredito-as ambas, e não ofendo os diversos opinantes.
O que devem todos acreditar é que Augusto Leite dispensou à condessa o trabalho de pôr o seu colar e pulseiras de brilhantes em um dia de anos duma sua prima. As suspeitas recaíram em todos os domésticos, menos em Augusto Leite. No dia seguinte corria em Lisboa que um académico, visita frequente da condessa de …, tinha perdido, em menos de três horas, trinta mil cruzados em casa do barão de Quintela. Os curiosos averiguaram o manancial possível deste dinheiro e souberam que um judeu na rua dos Fanqueiros comprara na véspera por trinta mil cruzados uns brilhantes. A condessa, com autoridade judicial, fez que o judeu apresentasse os brilhantes comprados. Reconhecidos, apossou-se deles sem mais formalidade. O judeu gritou contra a extorsão, perguntando se reviviam os tempos nefastos de D. João III; ofereceu-se voluntariamente para a fogueira; e a tudo isto, que realmente era patético, o procurador da condessa respondeu: res ubicumque est sui domini est.
O judeu não ficou sabendo latim, mas conheceu vários artigos da nossa legislação e aproveitou-se daquele que o autorizava a perseguir o ladrão.
Augusto Leite entrou em casa da condessa, quando ela voltava de reconhecer os seus diamantes. Um criado presenciou que ela algumas palavras lhe dissera, e o seu protegido respondeu a elas, voltando as costas para nunca mais tornar. Os maledicentes quiseram inferir da generosidade da condessa, que o avisou, consequências desfavoráveis para a honra dela. Como quer que fosse, Augusto fugiu de Lisboa, a pé, sem dinheiro, sem bagagem, com uma mulher ao lado, e assim vagou quatro meses, não sabemos por onde, até que o vimos entrar em casa da viúva de António José da Silva.
Tornemos agora a Casal de Pedro.
O enviado do regedor das justiças bateu à porta da estalagem, e perguntou que passageiros pernoitavam ali.
—Dois almocreves, o recoveiro de Vianna, um passageiro do Porto com sua mulher e um criado.
—Abra lá a porta—disse com a costumada intimativa o executor da lei.
Abertas as portas, os meirinhos encaminharam-se para o quarto do passageiro. Augusto Leite ouvira as perguntas. Saltara fora da cama para fugir, mas não conhecia um palmo da casa fora do seu quarto. Antónia Brites, companheira dos seus trabalhos, lembrou-se dalguns santos que conhecera na infância, e incomodou-os com as suas orações. O antigo tradutor de novelas não lera cousa que lhe servisse de modelo para semelhante conflito. Quis precipitar-se da janela, mas viu na rua os cavalos em linha. Recuou diante dum sacrifício inútil e apelou para os extremos.
Os meirinhos entraram e viram uma mulher de joelhos com as mãos erguidas e um homem de semblante feroz com duas pistolas aperradas.
O estalajadeiro, que caminhava na frente com a candeia, fez dois passos à retaguarda e declarou-se neutral. Os meirinhos, que tinham à vida o amor suficiente para viverem oitenta anos mais, não foram mais adiante que o prudente estalajadeiro. Augusto conservou-se na postura ameaçadora, fuzilando dos olhos um clarão mais vivido que a candeia trémula do petrificado taverneiro.
Um dos meirinhos, enquanto os outros voltavam as costas, veio à rua e disse que o homem não era para graças. O cadete apeou e subiu com dois soldados. Foi à porta do quarto e encontrou o atleta na sua imobilidade sinistra. Deu-lhe voz de preso e viu que o ladrão era surdo ou rebelde à lei.
— O melhor é botar-lhe as unhas—murmurou um soldado.
— Agarra-o, trinta e quatro!—disse o cadete.
O trinta e quatro entrou no quarto e, quando lançava mão aos copos da espada, sentiu um corpo duro bater-lhe na testa. Descarregou ainda um golpe e foi de bruços atrás da espada que bateu no sobrado. Estava morto.
O camarada do trinta e quatro correu em defesa do seu companheiro. Descarregou duas cutiladas na cabeça de Augusto; mas, à terceira, sentiu fraquear-lhe o braço, e veio recuando, cair, com uma bala no coração, aos pés do cadete.
Os outros soldados tinham subido e atropelavam-se à entrada do quarto. Augusto Leite, coberto de sangue, defendia-se debilmente com a choupa, que vencia o alcance das espadas. Os soldados, arrefecidos pelo aspecto dos dois camaradas mortos, não ousavam afrontar o aço da choupa, que algumas vezes sentiram resvalar-lhe na farda, deixando-lhe na pele um ligeiro ardor, que depois se exacerbava com a humidade do sangue.
O cadete, envergonhado da cobardia dos seus diante dum só homem, entendeu que salvava a sua honra, desfechando uma clavina no peito de Augusto Leite. Ao desfechá-la viu interpor-se-lhe um vulto. Era Antónia Brites, que vinha pedir-lhe de joelhos que não matasse Augusto. Não chegou a pronunciar a primeira palavra. Recebeu a bala, que havia de matar o marido de Rosa, e caiu pedindo confissão. Deus lhe levaria em desconto das suas culpas o bom desejo de reconciliar-se com o céu, porque fechou os olhos antes de ver o padre.
Augusto, impelido pelo instinto da vida, saltou da janela ao quinteiro com tal destreza que as espadas não puderam tocar-lhe. O quinteiro estava deserto de homens, e os cavalos soltos entretinham a fome no tojo. A comitiva correu atropeladamente a impedir a fuga. Quando chegaram ao quinteiro, meirinhos e soldados, qual deles mais corajoso, o que viram foi um cavalo de menos e na calçada fronteira as faíscas das ferraduras do que fugia. Alguns soldados quiseram montar, mas os cavalos, assustados pelo salto de Augusto ao meio deles, não deixavam estribar e jogavam de garupa com mau resultado para o meirinho geral, que perdeu aí os três únicos dentes que possuía.
— Já se não pilha!...—disse o cadete.
—Agora é vê-lo ir—acrescentou um soldado.
—Vamos ao quarto tomar-lhe conta das malas—disse o enviado do regedor das justiças.
Entraram no quarto. Abriram uma pequena mala de couro e umas bolsas de holandilha onde encontraram alguma roupa branca. Dinheiro, nem cinco réis. A volumosa carteira com três contos menos duzentos mil réis, que o sobrinho do senhor António José da Silva gastara em cavalos e pistolas, e fato, levava-a ele no bolso da jaqueta de peles.
De madrugada os executores da lei voltavam para o Porto, com os dois cavalos de Augusto Leite.
Os três cadáveres foram enterrados no adro da igreja paroquial, porque o vigário duvidou sepultá-los em sagrado, visto que não traziam sinal de cristãos, como cruz, nominas, bentinhos, verónicas ou outro qualquer distintivo da fé católica.

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